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Leandro Serpa: O enigma do lugar/matriz ou o artista fanático por marcas

Leandro Serpa é um jovem artista que vive e trabalha entre as cidades de Tijucas e Florianópolis, no Estado de Santa Catarina (Brasil). Formado em Artes Plásticas (2011), cursa Mestrado em Artes Visuais (2014), ambos na Universidade do Estado de Santa Catarina. O artista desenvolve os fundamentos de sua linguagem visual de forma inventiva, persegue marcas no tempo/espaço, que o faz mover-se na direção de um desejo: persistir. Como um jovem artista, Leandro persegue a marca viva de sua própria matriz, assim, construindo seu campo de saber, alcança com a monotipia o campo ampliado. Trata-se de um artista multimídia (gravador, pintor, desenhista, escultor e escritor) e ainda, professor. Instaura seu pensamento visual na fronteira entre as mídias ou linguagens: quando constrói monotipias, também faz pintura e gravura; quando faz gravura, esculpe linhas sobre a madeira ou metal. Quando desenha seus gráficos usando jogos de futebol, escreve e compõe textos, descrevendo o que observa em mapas (que são os registros das estratégias e jogadas que acontecem durante a partida de futebol). Na série de trabalhos intitulados “Fanáticos”, Leandro explora o Futebol/Arte como uma crítica enigmática narrada em meio ao jogo, ao lúdico e ao valor simbólico das paixões, que são evidenciadas durante a partida de futebol. O artista brinda a Arte Contemporânea com um processo que transborda a imagem/acontecimento como um devir.

Recordo ainda quando conheci Leandro em uma das aulas de Pesquisa em Artes Visuais. Leandro nunca foi um artista aviador, desses que pousa em qualquer lugar ou faz qualquer projeto para virar moda. Leandro sempre buscou tecer seu espaço e construir suas redes, e encontros e assim tem sido inquieto, transgressor, inventivo, mas lúcido, frente à Arte. Ele encontrou seu caminho em muitas horas de trabalho no ateliê, com as reflexões sobre suas aulas em escolas e oficinas e nos livros, nas noites de leitura para sua pesquisa. Leandro nunca esteve à deriva, pelo contrário, naquela época, eu já o via traçando mapas, escavando linhas que seriam decisivas para seu percurso artístico. ‘Devoto' de artistas como Carlos Vergara e Daniel Senise, Leandro Serpa busca construir sua própria subjetividade, para deixar sua própria marca em seu lugar matriz. Ele faz planos, traça metas, estuda os caminhos e pouco a pouco, coloca em prática sua estratégia, como um técnico que orquestra um time de futebol. Leandro é o técnico (mas pode ser um jogador também), que muitas vezes trabalha uma lógica inversa em um tempo que se esvai.

Leandro é um artista que aprecia enigmas, não se prende a facilidades e obviedades, não é seduzido pelo jogo fácil. Ele escolhe sempre o caminho mais longo, porque é no caminho mais longo, que aprendemos o valor de apreciar e construir, que colhemos mais marcas, neste caminho, o artista elabora um vai e vem (como ir e vir) em uma mesma paisagem. Ele insiste nas marcas mais profundas. Por quê? Porque Leandro é um homem-leão, como sugere seu nome. Tem um olhar singelo e afetivo com aqueles que estão a sua volta, mas sabe zelar, cuidar e proteger os dogmas de seu processo criativo, e da Arte que produz. Leandro move-se lentamente, mas como em uma partida de futebol, a jogada é certeira, o ataque é certeiro. Desta forma, Leandro desenvolve em seu processo criativo algo singular. Ele usa materiais alternativos em espaços não convencionais, destrói o uso do ateliê tradicional e o transforma em lugar de passagem, concebe assim, um eixo transgressor ao trabalho artístico sem entregar-se ao espetáculo e ao circo, assim a ético-estética transbordam em seu processo criativo, tanto nas imagens alcançadas, quanto na busca por elas.

O processo é a palavra chave no trabalho deste artista. A monotipia exige o tempo e o meio liquido, evidenciando um cuidado denso, ao passo que se insere em um lugar que pode ser no quintal de casa, ou uma fábrica abandona, ou um descampado aberto em meio à floresta. Das manchas produzidas, nascem formas pictóricas em monotipias. Surgem as imagens que não podem ser vistas, e sim imaginadas, como se não bastasse, Leandro ainda marca estas imagens com registros de partidas de futebol ou ainda, com desenhos, colagens e até, pinturas sobrepostas. O mesmo trabalho assume diversas vezes o próprio lugar de matriz. O artista persegue a imagem de forma exaustiva, onde a maioria das pessoas enxergaria apenas uma mancha. Leandro constrói e deambula sobre mapas e figuras. Outros artistas dar-se-iam por satisfeitos, com apenas o processo de encontrar a mancha. Neste sentido, o processo artístico que constrói o pensamento visual de Leandro Serpa é inquieto e singular, ele é ativo e contínuo.

Além disso, é relevante dizer que ao observar o processo criativo do artista, constatei que Leandro Serpa é um fanático. Aquele que tem um apego afetivo a certas práticas, seja por crença religiosa ou política, o apego é intenso, tem um sistema de valores próprios para seu procedimento artístico, é aficionado por imagens, por registros e por ‘guardados’. Como todo o homem contemporâneo, ele guarda o que lhe é sagrado, e tudo é sagrado no processo do artista, assim, ele não perderá possibilidades de desdobramentos. Guarda rascunhos, moldes, cadernos, anotações, escritos, desenhos, pinturas e gravuras. Sim, para Leandro cada item é diferente e relevante em sua materialidade física e virtual. Todas as obras são registradas e arquivadas, não no sentido de catalogadas, mas sim, no sentido que são potencialidades plásticas a serem desmembradas em algum futuro e colecionadas como marcas. Desta forma, a Arte Contemporânea está longe de um conceito representativo e também, não apresenta o resultado de um único trabalho, ela é o próprio trabalho ou o trabalho que virá a ser realizado, ou ainda o próprio processo de criação e quanto à imagem, esta nunca foi ‘apenas’ uma obra de arte, muito menos uma ilustração dos textos, mas sim, é uma das formas pelas quais a sociedade apresenta o mundo, isto é, torna-o presente para pensá-lo e agir sobre ele. Assim, não é possível mais perceber o indivíduo contemporâneo de forma passiva em meio à sociedade da informação (da sociedade como após 11 de setembro de 2001, ao ataque terrorista aos prédios do World Trade Center em Nova York). Da televisão (novelas, reality shows), passando por games (realidade virtual), sites de relacionamento (facebook, orkut, twitter, fotologs e blogs), facilidade de comunicação (email, MSN, skype), até ao apelo afetivo na sociedade de consumo, ao futebol, é desta forma que apreendemos imagens rapidamente em diversos sentidos de ‘estar’ no mundo real e virtual – nossas redes são afetivas, porém não fixas e isso diz respeito ao conceito de Alteridade, ou a forma como o homem constrói-se a partir do Outro.

Em 2014, o artista foi contemplado em Edital de Cultura, onde pode ter a possibilidade de envolver-se e desenvolver um projeto, cuja proposta além de produzir e exibir seu próprio trabalho permeia a discussão da Arte Contemporânea e da Cultura, em suas esferas diversas, como a cultura popular e erudita. Trata-se do projeto “Fanáticos”, estudo que envolve pesquisa e produção poética que aborda o tema futebol, discutindo Arte, Cultura e Futebol apropriando-se dos fundamentos do esporte para o campo do saber artístico. As obras apropriam-se de um prazer popular, de um repertório comum a um grande número de pessoas. Segundo o artista, a base do projeto está fundamentada num ‘jogo’ de relações entre Arte e Futebol como forma de discutir a Arte Contemporânea. O projeto ‘Fanáticos’ apropria-se do calendário esportivo, pensando as competições internacionais, nacionais e estaduais com destaque para a Copa do Mundo de Futebol (2014), que será sediada no Brasil para fundamentar a prática conceitual do projeto, e estabelecer o ‘jogo’ de relações que fazem com que a Arte Contemporânea alcance grande público pela via de um esporte que possui uma ‘gramática’ reconhecida por grande parcela da sociedade. Assim, o artista co-habita um tempo/espaço sobre a cultura visual, onde se torna intruso necessário, sendo transgressor, não visto mais como um sujeito criador, mas sim como um indivíduo inventivo e colaborativo – porque ele seleciona signos, explora campos de produção e manipulação e desenrola trajetórias entre estes meios, muitas vezes vinculados ao Outro como participador ou interator ou ainda, meramente espectador. Assim, o mundo pode ser construído de encontros fortuitos (materiais e aleatórios) e a Arte, por sua vez, também é feita de reuniões casuais e caóticas entre signos e formas, mas principalmente de relações estéticas pautadas sobre afeto e subjetividade e é exatamente isto que Leandro Serpa provoca com sua Arte.

Como artista professor, lugar matriz em que Leandro Serpa situa-se e onde mergulha neste momento, ele parte da pesquisa educacional baseada em Artes Visuais, bem como, dos textos de Eliot Eisner e John Dewey. Articula contexto e conteúdo em um formato não tradicional para o seu labor como professor artista. Compreende investigação, produção artística e teórica como parte do processo criativo e não momentos separados de um planejamento. Utiliza a proposição para a pesquisa baseada em Arte, que poderá estar envolvida com uma finalidade frequentemente associada com a atividade artística e/ou poderá estar também, definida pela presença de certas qualidades estéticas ou elementos de design que introduzem o processo de investigação e o “texto/produção plástica” de pesquisa. A pesquisa em Art-based educational research - ABER não aponta para uma busca por exatidão. Sua finalidade, ao invés disto, pode ser descrita como o ato de enfatizar perspectivas, ou seja, não oferece argumentos sobre como proceder diante dos confins de um encontro educacional, ou de um episódio de produção de políticas. Ao invés de isolar a discussão sobre as pré-suposições incorporadas dentro de um projeto de pesquisa, ela se move para ampliar e aprofundar conversações contínuas sobre a política e prática educacional chamando atenção para noções aparentemente de senso comum. Leandro, ao pesquisar sobre monotipia e usar o tema do Futebol, assumi-se, como um sujeito contemporâneo que produz Arte, ensina Arte e pesquisa sobre e em Arte.

Profa. Dra. Jociele Lampert
Universidade do Estado de Santa Catarina
2014

Referências Bibliográficas:

FIG, J. InsideThe Painter’s Studio.Princeton Architectural Press. New York (USA), 2009.

LAMPERT, Jociele. Cultura Visual, arte contemporânea e formação docente. 2009. 159 f. Tese (Doutorado Escola de Comunicações e Artes - ECA) – Programa de Pós-Graduação em Artes Visuais, Universidade de São Paulo, São Paulo, SP. Disponível em: www.teses.usp.br/teses/disponiveis/27/27160/tde...092340/.../5601890.pdf

Leandro Serpa, um ‘Fanático’

Fanático pode ser aquele que segue ou defende apaixonadamente uma seita ou opinião, seja filosófica, religiosa ou política; ou quem pratica alguma coisa de maneira apaixonada. Leandro Serpa apresenta uma série composta por pinturas, colagens, monotipias e até uma proposta lúdica, que convida o espectador a vivenciar o Futebol/Arte com peças que levam nomes de artistas que se movem como jogadores de futebol. O artista inverte o uso da imagem, inverte o acontecimento da visualidade e o conceito de Arte expande-se, e, assim, a grande jogada de Leandro é alcançar o campo ampliado na Arte Contemporânea. Dessa forma, gerando deslocamentos e produção de sentido ao seu lugar/matriz, expande o conceito de gravura tradicional e provoca o público, ao se perguntar sobre o conceito de onde estaria a Arte? Ou, então, de aproximar as visualidades da Arte e do Futebol, compreendendo a semelhança pelo desejo de êxito ao final, que é fruto de estratégias e táticas marcadas por práticas permanentes ao longo de determinado tempo. O mesmo significa que, para ter êxito, além da paixão, é preciso estar imerso, determinado, e ter uma insistente prática de pesquisa. Leandro Serpa é um Fanático.

O projeto Fanático foi premiado em 2013 no Edital Elisabete Anderle promovido pela Fundação Catarinense de Cultura de Santa Catarina (Brasil).

Profa. Dra. Jociele Lampert
Universidade do Estado de Santa Catarina
2014

Leandro Serpa, um artista multimídia

O artista visual Leandro Serpa desenvolve os fundamentos de sua linguagem visual de forma inventiva. Persegue marcas no tempo/espaço, que o faz mover-se na direção de um desejo: persistir. Como um jovem artista, Leandro persegue a marca viva de sua própria matriz, construindo seu campo de saber, alcança com a monotipia um campo ampliado. Trata-se de um artista multimídia (gravador, pintor, desenhista, escultor e escritor) e ainda, professor. Instaura seu pensamento visual na fronteira entre as mídias ou linguagens; quando constrói monotipias, também faz pintura e gravura; quando faz gravura, esculpe linhas sobre a madeira ou metal. Quando desenha seus gráficos usando jogos de futebol, escreve e compõe textos, descrevendo o que observa em mapas (que são os registros das estratégias e de jogadas que acontecem durante a partida de futebol). Na série de trabalhos intitulados “Fanáticos”, Leandro explora o Futebol/Arte como uma crítica enigmática narrada em meio ao jogo, ao lúdico e ao valor simbólico das paixões, que são evidenciadas durante a partida de futebol. O artista brinda a Arte Contemporânea com um processo que transborda a imagem/acontecimento como um devir.

Profa. Dra. Jociele Lampert
Universidade do Estado de Santa Catarina
2014

Mundo Bola

O artista visual Leandro Serpa, com tendências gráficas e pictóricas, pensa o fazer artístico como processo que segue a ideia de projeto, no qual ele define o conceito do que tem em vista que, nesse caso, é mental em todos os aspectos: desde a questão levantada até aos materiais e técnicas de que dispõe para expressar sua visão que envolve a arte como dispositivo esclarecedor acerca da cultura.

Jayro Schmidt
Escritor, Artista visual e Critico de arte.

A Pintura como expulsão de si. Experiência abjeta a partir do auto-retrato

Maristela Muller
Licenciatura em Artes Plásticas, UDESC

Abstract. This paper aims to present and reflect the work 'Self Portrait', by artist Leandro Serpa, born and resident in Brazil. In the brushstrokes of the artist proposes to think of painting as expulsion itself, an experience from the abject self-portrait, in what, for the artist it is exorbitant, threatening, painful and intolerable. Such reflections are supported primarily in Julia Kristeva, a writer who deals with and develops the theory of the abject.
Keywords. Self-portrait. Abject. Painting.

Resumo. O presente trabalho pretende apresentar e refletir a obra: ‘Auto-retrato’, do Artista Leandro Serpa, nascido e residente no Brasil. Nas pinceladas do artista propõe-se pensar a pintura como expulsão de si, uma experiência abjeta a partir do auto-retrato, naquilo que, para o artista lhe é exorbitante, ameaçador, doloroso e intolerável. Tais reflexões encontram suporte, principalmente, em Júlia Kristeva, escritora que aborda e desenvolve a teoria do abjeto.
Palavra-Chave. Auto-retrato. Abjeto. Pintura.

Introdução

Apresentar o Artista Leandro Serpa, Bacharel em Artes Plásticas pela UDESC – Universidade do Estado de Santa Catarina, com dados técnicos como: nascido em 09 de dezembro de 1983, na região da grande Florianópolis, Santa Catarina – BR, denota certa credibilidade a cerca da existência do sujeito. No entanto, esses dados não caracterizam suas obras, pouco diz sobre suas pinturas, pois elas vão muito além daquilo que está visível ou registrado. Suas obras, em camadas de tintas sobrepostas, refletem a experiência corporal, a dor, o sofrimento, a fragilidade humana, de seu interior inquieto e exorbitante, que encontra um meio de transbordar a partir da viscosidade da tinta, em forma de auto-representação.

Ao refletir sobre a densidade da pintura de Leandro Serpa utiliza-se como referencial teórico a escritora Júlia Kristeva (1988), que aborda e desenvolve a teoria do abjeto com suas principais bases em Freud, Bataille e Lévi-Strauss. Quando se remete a palavra ‘abjeto’, nossa mente direciona-se ao objeto, em virtude da semelhança da escrita, pois somente troca-se o artigo inicial ao escrevê-las. Mas, a relação permanece somente nesse sentido, pois o significado de uma e outra diverge. Abjeto não é objeto, artefato ou peça. A etimologia do abjeto é o afastamento. A experiência de atração e repulsão. O abjeto aparece como uma situação dicotômica, de ambiguidade ou oposição. Puro e impuro, proibido e pecado, moral e imoral, ordem e desordem, misto de juízo e afeto, condenação e efusão, signos e pulsão. A abjeção ocorre na experiência corporal, na sensação, comoção, agitação, aproximação e afastamento. No caso da pintura de Leandro, a dor que afeta, fragiliza, que é exorbitante e transborda por meio da tinta expulsando o indesejável, na tentativa de afastar o que atormenta, mas que continua próximo ao se fazer auto-representação na pintura.

1. Auto-representação do Artista

Leandro Serpa realiza auto-retratos em desenhos representando a sua face sóbria, no contraste do descoramento da pele com a densidade da barba, cabelo, sobrancelhas e olhos escuros. Conforme figura 1. Ainda, realiza a auto-representação nas pinturas de corpo, no qual, não apenas o rosto o caracteriza, mas todo o seu corpo encarna a insurreição do ser. Conforme a figura 2. Na auto-representação de corpo inteiro é que a pintura de Leandro Serpa se faz mais potente, pois nela se observa um corpo contrito, prostrado, sem a intenção de reivindicar a compaixão divina e sim ensimesmado, voltado para si, em seu sofrimento, que em desespero perde as forças e se lança ao chão.


Figura 1. Auto-retrato. Desenho em folha A4. Leandro Serpa. Florianópolis, 2006.

Os pigmentos utilizados na pintura potencializam a sensação de sofrimento. Os tons avermelhados empregados ao corpo remetem a carne, ao corte, ao sangue, a falta de pele, falta de proteção, a uma visão visceral, crua, interna e íntima. O avesso cotidiano do ente. O ser cruelmente exposto, aberto, com a boca arregaçada em grito. Um corpo ajoelhado, em convulsão, que ainda não se entregou, pois os braços estão rígidos, mas que não possui forças para se erguer. No contraste com a cor complementar do vermelho está o verde, o fundo que adentra a figura como lâmina oxidada do metal pontiagudo.


Figura 2. Auto-retrato. Pintura em tecido 80 c m x 160 cm. Leandro Serpa. Florianópolis, 2006.

Um corpo ensimesmado, voltado para sua dor, para seu interior, ou conforme Sánchez (2004), um corpo convalescente, voltado para si, na doença, na aflição, naquilo que afeta e fragiliza. Exatamente nesse ponto, que abarca a enfermidade, no qual Sanchez discorda de Merleau-Ponty. Para o filósofo Maurice Merleau-Ponty (1989, 1994, 2000, 2004), o corpo possui um sistema de troca constante com o mundo. Ambos estão em circuito, se entrelaçado o tempo todo. Já, Sánchez (2004), declara que especificamente, nesse caso do corpo enfermo, não há possibilidade de trocas com o mundo, pois o corpo se fecha, fica ensimesmado, voltado para si. “(...) en el caso del cuepo enfermo, del cuerpo ensimesmado en el dolor, (...) nada existe más allá de la misma.”(Sánchez. 2004, p. 25). Ou seja, nem sempre estamos imbricados com o mundo, no momento da dor, o corpo volta-se para o eu, onde nada existe para além de si, de seu leito, de sua convalescença e acaba sendo recortado do mundo. Esses momentos de dor, de inquietação, espasmo, rebelião do ser inassimilável, de acordo com Júlia Kristeva (1988), são características da abjeção.

Hay en la abyecctión una de esas violentas y oscuras rebeliones del ser contra aquello que lo amenaza y que le parece venir de un afuera o de un adentro exorbitante, arrojado al lado de lo posible y de lo tolerable, de lo pensable. Allí está, muy cerca, pero inasimilable.’(Kristeva. 1988, p.7).

Entre esses momentos de abjeção que Leandro se auto-representa, no desejo de por para fora de seu corpo, através da tinta, o que atormenta e consome, onde “(...) yo me expulso, yo me escupo, yo me abyecto (...)” (Kristeva. 1988, p. 10), para que o inassimilável fique preso na tela, na tentativa de afastar-se de si. No entanto, continua próximo, presente por meio da pintura, no jogo ambíguo da abjeção, entre afastamento e aproximação.

Um misto de sensações ambíguas, nas quais, também vigora a atração e repulsão. A pintura proporciona um meio de expulsão, escape, transgressão possível, violação, sair de si. Ao mesmo tempo em que o artista vive uma situação abjeta para pintar, também se satisfaz com o espasmo corporal causada para execução da pintura. “En este sentido, se lo goza. Violentamente y con dolor. Uma pasíon. (...). Ahora se comprende por qué tantas víctimas de lo abyecto son víctimas fascinadas, cuando no dóciles y complacientes” (Kristeva. 1988, p.17 e 18). A pintura se apresenta como um tormento aliviador. Um gozo doloroso. Ódio que sorri. Rebelião satisfatória. Estupro viciante. Abjeção.

“El abyecto quiebra el muro de la represíon y sus juicios. Recurre al yo (moi) en los limites abominables (...), em la pulsíon, em la muerte.” (Kristeva. 1988, p.24). O abjeto é aparentado com a ‘perversão’ (Kristeva. 1988, p.25) e a ‘transgressão’ (Bataille. 1988, p. 55-60). Sendo que o sentido último da transgressão, do erotismo, da abjeção é a morte. Conforme o artista se representa, em cada pintura existe uma pulsão de morte. Cada pintura suprime uma parte de si, exclui o eu indigesto que é abandonado na pintura, um afastamento presente que ressurge noutra significação. Nas representações que possui a tentativa de expulsão, afastamento de si caracteriza a morte do artista, na pulsão de morte que, ao mesmo tempo, é um arranco de vida.

As reflexões de Kristeva e Bataille, a respeito da abjeção, têm em comum não somente a referência relativa ao limite da margem da ordem, a transgressão, a morte, mas também aquilo que ameaça a fragilidade humana. “Aquello que perturba una identidad, un sistema , un orden. Aquello que no respeta limites, los lugares, las reglas. La complicidad, lo ambíguo, lo mixto.” (Kristeva. 1988, p. 11). Transgressão, abjeção, rebelião do ser, expulsão de si. Problemáticas que podem ser refletidas na pintura de Leandro Serpa, assim como de outros artistas que realizam a auto-representação.

Considerações

Abordou-se, ao longo da reflexão a obra ‘Auto-retrato’, do artista Leandro Serpa. A pintura sendo executada em um momento de rebelião do ser, de abjeção, uma maneira de expulsar-se de si, por para fora do ser o que fragiliza e atormenta, utilizando a viscosidade da tinta em suporte escolhido. No entanto, constatou-se que por mais que ocorra essa expulsão, essa morte, ainda se trata de um tormento presente, que não mais se apresenta enquanto sensação corporal, mas que transbordou, se fez pintura e continua próximo revisitando, constantemente, quem o expulsou. Dessa maneira, percebe-se quanto é inassimilável se auto-representar, em um misto de agonia e prazer. A auto-representação passa da pulsão de morte para outra significação, num arranco de vida.

Referências

BATAILLE, Georges. O Erotismo. Lisboa: Edições Antígona, 1988.

KRISTEVA, Julia. Poderes de la Perversion. Buenos Aires: Catálogos, 1988.

MERLEAU-PONTY, Maurice. O Olho e o Espírito. São Paulo: Cosac & Naif, 2004.

______. A Dúvida de Cézanne. In: Textos Selecionados. São Paulo: Nova Cultura, 1989. (Os Pensadores). P.113-126.

______. Fenomenologia da Percepção. São Paulo: Martins Fontes, 1994.

______. O Visível e o Invisível. São Paulo: Editora Perspectiva, 2000.

SÁNCHEZ, Pedro A. Cruz. La vigília del cuerpo: arte y experiência corporal em La contemporaneidad. Murcia, Espanha: Tabvlarivm, 2004.

Fanáticos, projeto Pretexto

A popularidade do futebol no Brasil é o resultado da intensa paixão de milhões de brasileiros por esse esporte. Leandro Serpa recorreu a esse fenômeno e usou dos fundamentos do futebol para discutir arte, cultura e fanatismo. Sua obra Futebol: série fanáticos está subdividida em três temáticas: o desenho da trajetória da bola, elaborado a partir de diferentes jogos ocorridos em tempo real; inversões, troca de cores dos escudos e uniformes entre os times clássicos do futebol brasileiro; e, seleções da história da arte, formadas por artistas escolhidos pelo autor que se apropria da narrativa escrita para simular entre eles um jogo de futebol. O movimento é um aspecto predominante nas três temáticas: as linhas, definindo a trajetória da bola, mais que densas, são o entrecruzamento dos pensamentos materializados dos próprios jogadores em campo; é o movimento imagético do conjunto das estratégias dos times rivais, do conjunto das possibilidades da locomoção da bola numa dimensão limitada de espaço e tempo; a linha é o tempo no espaço, a bola, o espaço no tempo. A linha que se reveste de movimento pela locomoção da bola em campo é a linha das palavras escritas que se faz narrativa do futebol entre os artistas da história da arte. Aliás, o modo de ser de cada artista é um imperativo que movimenta a trama futebolística, as estratégias, as táticas de jogo, as posições em campo. Tudo é dinâmico. Mas se o movimento descrito, até então, parece interno à obra, há que se considerar um movimento externo a ela: aquele que se reproduz subjetivamente no torcedor contrariado frente às novas cores que preenchem a forma do escudo e do uniforme do seu time. Com essa reação, o autor traz à tona um contexto cultural de antemão para não somente tematizar tal comportamento, mas também para justificar a pertinência da reflexão a que conduz sua obra.

Rafael Adolfo
Projeto Pretexto, Tijucas/SC, 2010.

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